quarta-feira, 24 de agosto de 2016

A cruz e “o paradoxo do eu”

Mt 10.37-39 e 16.21-24″Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. E quem não toma a sua cruz, e não segue após mim, não é digno de mim. Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida, por amor de mim, achá-la-á.” Mt 10.37-39
“Desde então começou Jesus a mostrar aos seus discípulos que convinha ir a Jerusalém, e padecer muitas coisas dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia. E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso. Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens. Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me;” Mt 16.21-24
Muitas mensagens e abordagens já foram feitas sobre estas passagens. Ex: Sobre o negar-se a si mesmo, o renunciar-se como sendo uma negativa do eu, das vontades, dos desejos, dos anseios, e isto é de fato necessário para aqueles que querem seguir a Cristo. Outra abordagem comum é sobre o “tomar a sua cruz”. Mesmo os descrentes falam sobre isto, que cada pessoa deve levar sua própria carga, vencer suas próprias dificuldades, resolver e carregar os seus problemas, tentar vencê-los sem deixar nada pendente, sem titubear.
Mas não são estas as abordagens que faremos, cremos que o Senhor nos deu uma perspectiva totalmente diferente a respeito destes textos.
  1. John Stott, em seu livro a Cruz de Cristo, inicia a sua reflexão identificando qual o principal símbolo cristão. Qual o símbolo que melhor representa o cristianismo? Qual a figura/forma ou imagem que quando vemos nos remete a fé cristã? Certamente a cruz. E continua indagando sobre o por quê da cruz, sugerindo a seguinte reflexão (mais ou menos deste modo): Imagine alguém do oriente médio ou da África, que nunca ouviu o evangelho, que nunca ouviu falar de Jesus, e que é convidado para assistir a um culto, e ao chegar a igreja, logo na entrada vê uma cruz vazia. Então pergunta: “Por que a cruz? Por que adorar a um homem que foi crucificado, que sofreu martírio, que foi condenado como um criminoso pelo governo romano? Por quê?”
Então alguém mais instruído na palavra de Deus lhe fala sobre Cristo. Revelaria que Jesus é o unigênito do Pai, o início e o fim, o primeiro e o último, por meio de quem tudo o que existe foi criado, por ele, por ele e para ele (Jo 1.1-3 e Rm 11.36), que Cristo fez sinais, maravilhas e milagres. Fez a tempestade acalmar e o mar se calar, andou sobre as águas. Curou cegos, coxos, leprosos e de pessoas com todo tipo de enfermidades, isto diante de grandes multidões, incluindo na presença de seus opositores, e por fim, porque ele venceu a morte, ele ressuscitou, diria.
Digamos que esta pessoa (hipotética) se desse por satisfeita ao ouvir todas as coisas sobre Jesus, e pensasse “é mesmo, até a história é dividida em antes e depois dele”, mas a pergunte persiste: “Por que a cruz?”
Se Jesus fez milagres, sinais e maravilhas, por que não lembrar deste dias ao invés de seu martírio? Por que fazer menção a sua morte?
  1. Jesus, quando estava na terra, deixou duas ordenanças: Batismo e Ceia. Ambas simbolizam e nos remetem a sua morte.
“Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; E, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha.” I Co 11.23-26
A ceia é um memorial de sua morte, e a imersão do batismo representa o sepultamento e a ressurreição do crente em Cristo.
“Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo”; Mt 28.19
Por que instituir memoriais de sua morte e não de outro momento? (a questão continua) Por que a cruz?
Algumas pessoas, que não compreenderam ainda o evangelho veem um dualismo de vontades, como se houvesse uma luta entre o querer do Pai (justiça) e o querer do Filho (misericórdia). Na época medieval e no período da reforma as pessoas viam a Deus Pai como uma figura implacável, desejando a condenação e o sangue dos homens e a Jesus como o Filho misericordioso, lutando para tentar convencer ao Pai para que não condenasse os homens, como se as vontades fossem opostas, quando na verdade Deus (Pai) deu seu Filho unigênito para todo aquele que nele crê não pereça. Ele deu, Ele ofereceu, porque quis, e o Filho se oferece em sacrifício por amor ao Pai e em favor da humanidade.
Acredito que algumas pessoas, se estivessem presentes no tempo de Jesus, agiriam exatamente como Pedro (Mt 16.22) ou de modo bem semelhante, diriam: “Não Jesus! A cruz não!” A resposta de Cristo à Pedro foi “para trás de mim Satanás”.

Jesus não foi forçado a ir a Cruz, ele foi porque quis, foi por amor.

Alguém já declarou que não foram os romanos que prenderam a Jesus na Cruz, não foram os Judeus, não foi Pôncio Pilatos e nem o Rei Herodes, mas os nossos pecados. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. […]Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão.” Is 53.5,10
Nenhuma criatura dos céus ou da Terra poderia segurar a Jesus naquela cruz, mas ele se ofereceu, por livre vontade, para ser a expiação por nossos pecados. I Jo 2.2
  1. O Cristão que compreende a Cristo ama a cruz.
Ele entende que é por causa da cruz (do sacrifício) tem paz e perdão dos pecados. Que o sangue nos purifica de todo pecado. I Jo 1.7
“Porque foi do agrado do Pai que toda a plenitude nele habitasse,E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra, como as que estão nos céus.” Cl 1.19-20
“E, quando vós estáveis mortos nos pecados, e na incircuncisão da vossa carne, vos vivificou juntamente com ele, perdoando-vos todas as ofensas, havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz.” Cl 2.13-14
“Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados.” I Pe 2.24
Pelo cruz, isto é, pelo sacrifício de Cristo temos a paz com Deus, temos entrada no Santo dos Santos, fomos reconciliados pela obra consumada na cruz.
  1. Bem, mas que relação isto tem com o texto “negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz”?
Quero chamar a atenção para os contextos destas falas. Vejamos:
Em Mt. 10.37-39. Jesus diz que qualquer que amar mais a alguém, seja pai, seja mãe, irmão, irmã, filho ou cônjuge não é digno dele. E que quem buscar salvar a sua vida perdê-la-á e quem entregar a sua vida por amor de Cristo encontrará a vida eterna.
Em Mt. 16.21-24 Jesus estava falando sobre a sua entrega voluntária a morte de Cruz, isto é, sua completa entrega ao propósito de redenção dos homens, aos desígnios eternos do Pai.
Na realidade, em um sentido mais profundo, o convite a tomar a sua cruz é um convite a morte e a morte de cruz.
Quando chegamos a plena compreensão do evangelho, entendemos que fomos/já estamos crucificados com ele. O mundo morreu para nós e nós para o mundo. Somos como forasteiros, peregrinos, estrangeiros nesta terra.
O desafio proposto por Jesus “nega-se a si mesmo” equivale a dizer “não ame mais a sua vida, mas a minha, e a amando a minha vida em vós então tereis vida abundante, e a vida eterna”.
O que Jesus fez, e é o tema da mensagem, é nós colocar diante de um paradoxo: Sempre que alguém busca satisfazer o interesse próprio, sempre que procura viver a sua vida, independente de Deus ou de Sua vontade para nós, então o seu caminho o levará por fim a morte eterna, e, por outro lado, aquele que aceita e se entrega a sua morte, isto é, carrega a sua cruz mesmo diante de escárnios, que aceita a morte do ego, do eu, e até (falando dos mártires) aqueles que aceitaram a morte física por amor de Jesus, então estes encontrará a plena felicidade e a vida eterna.
Ele não falou isto somente como de coisas futuras, mas também vemos o cumprimento destas palavras na vida prática. Sempre que amamos aos outros manifestando o amor de Deus em nós, sempre que nos doamos a ajudar, somar, contribuir, sempre que estamos em comunhão com Deus e na contramão do mundo, então estamos felizes, estamos no âmago da satisfação. Sempre que dominamos a nós mesmos e negamos a nós mesmos por amor de Cristo, quando conseguimos fazer isto (pois não é fácil), ai então está a nossa felicidade, a paz que nos invade excede a todos entendimento, encontramos a paz que Cristo dá.
Quando tomamos a nossa cruz e aceitamos a morte de nós mesmos, então estamos vivos, mas quando buscamos a vida, este mundo e somente o que ele pode nos oferecer, então estamos mortos (ou caminhando para a morte). Chamo isto de “paradoxo do eu”.
A vida está na morte de Cristo, que representa a morte de todo aquele que nele crê. Assim estamos escondidos nele, para também ressuscitarmos com ele naquele glorioso dia. Se morro para mim mesmo, então vivo, se não morrer, antes desejar viver para o mundo, então só me resta a morte, a separação eterna de Deus.
A cruz diz não a nossa carnalidade, diz não ao nosso egoísmo, diz não ao nosso próprio interesse. Compreendendo e aceitando o não de Deus então é possível receber o seu sim. A cruz nos confronta e revela a nossa iniqüidade, nos leva ao local de morte, “fazei morrer”, diz o apóstolo, e quando ela está a nos matar, nos confrontando e expondo os nossos erros, então O vemos e nele encontramos o perdão, ele pagou o preço, então somos felizes.
O alívio que vem sobre nós, nenhum homem, nenhum objeto ou bem, nenhum prazer pode ser comparado a presença e a paz de Deus em nós.
Paulo compreendeu e externou estas verdades:
“Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim.” Gl 2.20
“Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo.” Gl 6.14
“Negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.
*Pontos principais da mensagem pregada no dia 19/04/2015 – Igreja Batista Memorial de Macapá/AP  (Pr. Flávyo Santos)

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